Dezoito dias, do mês de fevereiro, de 2009. Uma janela no tempo, que interrompeu a cotidianidade de nossas vidas, brindando-nos uma experiência encantadora, sem precedentes e com conseqüências imensuráveis.
Agora já Rondonistas, porém ainda novatos neste oficio, fato que nos intimida ao desejar relatar esta experiência. Apesar disso, não podemos omitir esta aprendizagem, na esperança de que as palavras conquistem novos sonhadores de um mundo melhor, mais justo, mais igual.
Deixa-se uma rotina para inaugurar uma vida
Nossa jornada aconteceu em Borba, a primeira Vila criada em território amazonense (1728). Capital distrital, distrito, capital de comarca, para finalmente em 31 de março de 1928, alcançar o patamar de cidade. Borba pertence à Bacia do Rio Amazonas, em seu território correm seis grandes rios, tendo como principal o Madeira. A ligação de Borba à capital é apenas fluvial com uma distância de aproximadamente 220 km (23 horas) e aérea cerca de 150 km (30 minutos). O e seu território é de 44.251,19 km2 com uma população aproximada de 31.098 habitantes (IBGE, 2007).
Com a econômica baseada na agricultura de subsistência, com características rudimentares, predominando as culturas de mandioca, melancia, abacaxi, banana e abacate. Em 2005 o município atingiu um PIB de R$ 83.942,00.
Existem aproximadamente 170 escolas em todo o município. De acordo com o IBGE de 2007, Borba possui 8.367 alunos inscritos no ensino fundamental, 814 no ensino médio e 1.066 alunos na pré-escola, totalizando 10.247 alunos regularmente cadastrados em escolas municipais e estaduais. Borba ainda conta com um Hospital Municipal e cinco postos de saúde, os casos de atendimento mais comuns são de doenças tropicais, principalmente dengue e malária. Na região a gravidez precoce é freqüente, e por conseqüência ocorrem também registros de doenças sexualmente transmissíveis.
O município possui uma pequena estação de tratamento de água, que atende parte da população, porém a maioria dos habitantes recebe água de poços artesianos coletivos sem tratamento prévio. O esgoto não possui tratamento, sendo as fossas sanitárias individuais o destino da maior parte do esgoto gerado pela população. Recentemente foi implantado o sistema de coleta de resíduo sólido urbano, seu descarte é feito em uma região distante do centro, próximo ao balneário Lira em lixão, precário e ainda distante dos projetos ambientais atuais.
Foi nesta região chuvosa, de muito calor, onde trabalhamos, ou para sermos mais honestos, onde aprendemos a trabalhar conforme as leias da selva. Foi nesta localidade onde abandonamos nossas vidas para aprender outro modo de vida, igualmente valioso e belo.
Flexibilizar nossos conhecimentos para criar ações
Pensar nas atividades só poderia ser uma obra coletiva. É com a força do conjunto que existe o Projeto Rondon, da parceria entre instituições, entre militares e civis, entre comunidade e universidade, entre governo e sociedade, entre profissionais e cidadãos.
Foi assim que nos enquadramos no Conjunto A, considerando os membros do grupo trabalham ou já trabalharam com projetos de pesquisa, docência, assessoria, trabalhos técnicos ou mesmo como voluntários em CIDADANIA e BEM-ESTAR. Com o propósito de “desenvolver atividade de capacitação de profissionais das áreas de saúde, educação, de organizações civis e meio ambiente e atividades de integração e conscientização da população em geral”.
Assim programamos um variopinto de atividades: Cinema na rua, oficinas de origami, fabricação artesanal de sabão, construção de fossas cépticas orgânicas, cursos de pedagogia, dificuldade na aprendizagem e ludicidade na escola, fabricação de papel reciclado, mutirão de retirada de entulho, coleta seletiva de lixo, criação de mini-bibliotecas, organização de grêmio estudantil, oficina sobre Educação sexual, DST, AIDS, Álcool e Tabagismo, curso sobre avaliação do crescimento e desenvolvimento de bebês, cursos sobre humanização e acolhimento no serviço de saúde, mini feira de saúde sobre hipertensão e diabetes, teatro sobre parasitoses, oficina sobre meio ambiente e saúde, oficina familiar sobre Shantala, aleitamento materno e alimentação complementar. Quase nos faltou fôlego para redigir esta lista, o mesmo esforço que necessitamos para exercer tudo o que planejamos.
Conclusões
Toda missão tem um fim, mesmo quando não se pense no tempo faltante, e, apesar do desfrute de cada segundo. Cabe-nos dizer que planejar é fundamental, buscando a fórmula ideal de aproximação e troca. Contudo, devemos aceitar que ficamos distantes do ideal, tendo que aceitar e lidar com o real, que nos impõe o dia a dia, o trabalho. Por isso, é imprescindível o diálogo com os Rondonistas que nos precederam, fonte de inspiração, mas também de experiência qualificada.
De tudo, seria uma grave falta no destacar a Radio local, maior veículo de comunicação, e provavelmente nosso mais generoso aliado.
Sem dúvida, aprendemos que a generosidade é um bem, que escutar vale tanto quanto agir, que o conhecimento não possui patente, não se limita aos letrados, mas se nutre da aptidão da bondade e da vontade de compartilhar e unir esforços. Foi assim que vimos e vivemos estes dias, em Borba, no Rio Madeira, na Floresta Amazônica, na fronteira do Brasil com a natureza, na companhia de professores, gestores, crianças e adultos, que além de nos proteger, nos instigaram a oferecer toda nossa energia e sapiensa.
Finalmente, não podemos deixar de salientar nosso mais que sensível e direto contato com os formadores indígenas, cuja diversidade étnica, lingüística e cultural nos deixou maravilhados, e amplificou as aprendizagens e trocas.
Para superar o calor, a alteridade e simplicidade daquele lugar, para superar nossos excessos e confrontar-nos com apenas o melhor: nós mesmos (e também com nossos companheiros). Sem luxo, mas com comprometimento dilatado e a sublime alegria. Enfim, Rondon, Rondon, Rondon!
Projeto RONDON – Operação Centro-Norte 2009 – PREAC – UNICAMP
Município de BORBA – AM
Coordenadores
Profa. Dra. Luciana de Lione Melo – FCM – UNICAMP
Prof. Dr. Marco Antonio Coelho Bortoleto – FEF – UNICAMP
Equipe
Ana Paula de Brito (FCM – Enfermagem)
Giovanni Archanjo Brota (FEAGRI)
Karina Rospendowiski (FCM – Enfermagem)
Karolina Ap. Pereira (FCM – Enfermagem)
Luiz Guilherme Andrade Menossi (FEQ)
Arthur F. Gaspari (FEF)
Sargento SAMPAIO – Exército Brasileiro – SELVA – CIGS!
- Encontros regulares para pizza
Mais informação em:
Jornal da UNICAMP – (Reportagem 1 Reportagem 2)
Shantala – Notas Profa. Luciana
Notas de Luiz Guilherme
Ser rondonista é uma experiência fantástica! Foi só descobrir que teria a oportunidade de integrar uma equipe, e minha cabeça foi sendo tomada pelas mais diferentes idéias. Eu tomava vacina, me prepara, estudava, participava das reuniões, arrumava bagagem; sempre pensando em como ajudar a transformar a realidade das pessoas da comunidade, pensando no quanto eu poderia fazer. Até que chega o momento da viagem. Os pensamentos dão lugar a realidade e os dias de rondonista vão se seguindo num grande emaranhado de experiências e emoções. Não são muitos dias, mas com o perdão do péssimo trocadilho, são dias de muito. Tem muita surpresa, muito espanto, muita atividade, muita imagem, muita conversa, muita reflexão, muita discussão, muita gente, muito calor, muita água, muito verde, e muitas outras coisas. Quando você se dá conta já está voltando. E nessa hora a gente entende. A arrogância do querer ajudar dá lugar à humildade da impotência. Saí de Campinas pensando em transformar, mas tinha percebido que ao voltar de Borba (AM), o transformado tinha sido eu!
É impossível falar de todos os muitos episódios que levam a essa transformação. Mas alguns, definitivamente merecem ser lembrados. Por exemplo, o mal-estar dos primeiros dias. É que a gente não percebe a importância de coisas como saneamento básico, até que chega o momento em que se corre o risco de se suspender todas as atividades porque toda a equipe está plantada no vaso.
As diferenças culturais também chocam. Principalmente as gastronômicas. É que por mais que o calor seja grande, o arroz frio não é comum ao paladar paulista. Aliás, também não o são o feijão com legumes, o peixe com barrigada ou o macarrão com molho de colorau. Mas isso a gente tira de letra. Mais difícil talvez, é entender os sólidos laços de fraternidade com os animais. Legal deixar o cachorro comer seu arroz. Mas na panela? E antes de todo mundo comer? E olha que tinha que guardar segredo. Imagino que se ficassem sabendo, o pessoal que já estava perdendo bons quilos ia acabar desmaiando de fome. Fazer o que? O jeito é pegar um prato bem modesto, fechar os olhos e imaginar um banquete farto como os meninos da Terra do Nunca. Com tudo isso saiu ganhando o tio da pizza do centro. Vendia umas 3, 4 por noite para aplacar a “inexplicável” fome dos rondonistas.
Tem coisa que acontece para mudar nossa visão. Depois de conhecer a vida de uma comunidade ribeirinha, a gente começa a dar muito mais valor às coisas que temos. Se hoje procuro reclamar menos e me contentar com as coisas que tenho, é porque fiz a experiência de ser privado de coisas tão corriqueiras como um chuveiro. Banho de balde? Moleza! Isso até você ficar sem água no balde, num breu total, no final de uma escadaria que termina no rio madeira. Só pioraria deixando o sabonete cair no rio, né? O meu não chegou ao rio (peguei antes), mas experimentei um ótimo banho esfoliante com o sabonete cheio de areia. E se parece muito, imagina ter um pedido de ajuda negado e ter que subir correndo no meio da noite de cueca branca para se enxaguar numa torneira de um metro de altura. Pois é. Aconteceu também. E sei que vai parecer mentira, mas teve mais. Quem imaginaria que ao voltar à escuridão para se secar e pegar a roupa, o pobre coitado encontraria uma caranguejeira enorme do lado da toalha quando a iluminasse com a pequena lanterna? Eu consigo imaginar bem (arrepio…). Só não foi um desastre total porque o legal que apontou a lanterna pra mim chegou tarde. Por 5 segundos não pegou pelado com cara de assustado (a aranha ainda estava perto).
Foi uma surpresa muito agradável perceber o sucesso que a oficina de fabricação de sabão a partir de óleo usado, feito em parceria com a bióloga da outra equipe, fez com a população de Borba. É bem relevante você se dar conta que as coisas “inteligentes” e “úteis” que tinha preparado pra dizer para a população são bem pouco inteligentes e úteis de fato, e que uma coisa simples como fazer sabão á muito mais interessante. É um pecado não aprender um pouco da simplicidade das pessoas que conhecemos em Borba. Além do mais, acabei aprendendo mais de química. Antes eu não saberia dizer o que acontece se misturarmos uma solução de soda com alumínio. Agora eu sei: 2NaOH + 2Al + 2H2O → 2 NaAlO2 + 3H2. Em outras palavras: solução quente de soda comercial numa bacia de alumínio leva a uma forte reação com liberação de gases que vão levar todas as porcarias da soda comercial para o ar. O resultado disso é uma fuga geral da sala, com pessoas pulando até pela janela, e o paspalho do rondonista na sala toda esfumaçada tossindo e com os olhos lacrimejando enquanto tenta convencer as pessoas de que aquilo não é tão ruim. Só não fiquei sozinho na sala porque um bom vídeo de uma lambança dessas vale a inalação de um vaporzinho tóxico.
Poderia falar ainda das maravilhosas crianças com energia infinita, do mortal com a carriola, das belezas naturais, da inesquecível viagem de barco, do brigadeiro, dos urubus, do suave aroma do quarto masculino, da convivência com índios de várias etnias diferentes e muitas outras coisas. Mas como já escrevi demais, vou me limitar a dizer que no meio de todas as experiências inusitadas, sobrou espaço para um aprendizado enorme e inesquecível. Por isso, termino como comecei. Ser rondonista é uma experiência fantástica! (LG).